domingo

Anatomia de um Pesadelo



- ... prá dentro, ó peste! Vou tê que lhe chamá quantas vez?... Deixe seu pai chegá, e você vai vê só...

Raimundinho desceu finalmente do cajueiro certo de que quando painho voltasse ia ter coisa... Ao passar entre a mãe e a porta entreaberta, o cascudo no quengo.

- Ai, mainha!
- Vai aonde, minino?
- ... me desapertá, mainha!...
- Pois então, se avie...

Enquanto Raimundinho aliviava a bexiga, a mulher resmungava:

- Minino arretado, quanta vez já chamei pra'judar a ‘cascá macaxeira e quebrá côco... Veve pendurado nessa árve!. Pass' o dia inteiro a lhe berrá... Ê vida!...

A criança sentou-se à calçada de pedras onde a mãe deitava as raízes e os cocos que logo se transformariam no mais delicioso bolo da região.

Sêo Raimundo, o pai, saía todos os dias a procura de trabalho, e Mariinha precisava do auxílio do filho para dar conta de tanto afazer. Acreditava que era ela, e somente ela, que com seus doces de caju, suas cocadas, seus saborosos bolos doces vendidos na feira, e aos domingos na saída da igreja, vinha sustentando a família.

Raimundinho não se conformava por não poder mais estudar... A escola ficava distante, mas era lá que se reunia todos os dias com os amigos para brincar e sonhar. A escola,... construção rudimentar, caía aos pedaços e, para que tentasse cumprir algum papel na pequena comunidade fez-se necessário levantar um cômodo em pau-a-pique.. Alvenaria era promessa mesmo antes de o menino nascer.

Aliás, a criançada do lugar prestava muita atenção aos candidatos a vereador e deputado que, de tempos em tempos, apareciam por lá.. Encantavam-se. Eles sempre impressionavam com seus carros e roupas bonitas; o palavreado; os cabelos bem assentados, e aquele cheiro diferente, tão bom... Dona Ceição, a professora, sempre os recebia muito bem; cheia de sorrisos desdentados. Não os tratava como aos alunos, que vivia a colocar de castigo quando faziam alguma pergunta que ela nunca sabia responder. Nem os xingava como ao pastor quando, certa feita, chamou-a de uns tantos nomes, que para Raimundinho e os colegas de escola eram desanimadores porque significavam a mesma coisa... Certo é que a garotada olhava para aqueles homens e apreendia que a vida poderia não ser sempre assim, tão igual, tão... "pequena", como a que conheciam. Seus caminhos poderiam alongar-se e levá-los à realização de alguns sonhos.

E Raimundinho ia construindo suas convicções... Mentir, afinal, não era algo tão ruim quanto painho e mainha lhe garantiam.

Mas desde que painho fora dispensado do trabalho, sua vida era quebrar e ralar coco, ou plantar, colher e descascar macaxeira para ajudar a mãe.

Por isso gostava tanto de ficar lá em cima, acocorado num galho mais forte do cajueiro. A árvore era grande, alta, tão alta que podia ver a estrada e pensar que, em algum momento, seguiria por ela até os seus sonhos, por agora mais distantes.

Tudo que podia fazer era imaginar... Tratava então de pegar carona no vôo dos passarinhos, e, lá do alto, até podia ver-se, bem fatiotado e paparicado como os tais vereadores e deputados que, de tempos em tempos, apareciam até mesmo em sua casa trocando promessa por voto enquanto empanturravam-se com nacos de bolo oferecidos por sua mãe, encantada com a proximidade de "homens tão importantes."

E Raimundinho sonhava... Um dia chegaria a sua vez.

ju rigoni (1990)


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Um comentário:

Eloah Borda disse...

Oi, Ju, vim matar a saudade de "te ler" um pouco - e amei "Anatomia de um Pesadelo - parece que Raimundinho é bastante esperto pois já descobriu o caminho para realizar seu sonho...
Beijos.
Eloah